O C6 Fest no Rio de Janeiro é cria do saudoso Free Jazz, o que justifica e explica uma noite inteira dedicada à nova encarnação do gênero.
Domi and JD Beck, Samara Joy e Jon Batiste são jovens que estão diluindo as barreiras do jazz ao unir seus improvisos e virtuosismo um alto grau de inventividade, presença de palco e carisma – uma combinação que se provou irresistível para o público carioca na segunda noite do C6 Fest.
C6 Fest no Rio: veja como foi o show de Domi and JD Beck
Domi and JD Beck disseram ter voado mais de 20 horas para estarem ali – porém, não aparentavam. Cansaço e fusos desconexos não parecem ter impactado a coesão rítmica do duo que vem chamando atenção desde 2018, assinou com a gravadora de .Anderson Paak e lançou seu álbum de estreia, NOT TiGHT, no ano passado.
Esse trabalho foi o carro chefe do show, que passeou por todo o repertório – incluindo as faixas onde receberam, no disco, convidados estrelados. Aparecem na tracklist nomes como Thundercat, Herbie Hancock e Mac Demarco, mas no palco são os próprios Domi e JD que cantam. Quando não conseguem evitar, claro. A cada música acompanhada de vocal, eles pedem desculpas à plateia por não serem seus convidados de luxo e afirmam categoricamente que odeiam cantar.
Eles são bons, mesmo, é na fusão perfeita dos teclados de Domi com a bateria de JD Beck. Os andamentos quebrados do jazz criam caminhos próprios para se reencontrarem algumas frases à frente, sempre em uma sintonia impressionante. Talvez ajude o fato de que a dupla toca cara a cara, com seus instrumentos se encarando. As personalidades dos artistas brotam inevitavelmente a cada interação com os fãs que, aos poucos, foram chegando para o início da noite.
Entre tiradas sarcásticas, alguns palavrões e muita alegria por estarem finalmente no país (“tem cinco anos que recebemos comentários ‘come to Brazil’, agora estamos aqui, porra!”), eles mostram um domínio do piano e da bateria associado a artistas mais experientes, porém trazendo a ousadia de uma geração que se recusa a caber no estereótipo do jazzista embotado que ocupa estes espaços há um século. Domi e JD Beck mostram que é possível levar o jazz a outros patamares, e isso passa por escolhas fashion, fusões com outros gêneros e, claro, muita personalidade.
C6 Fest no Rio: Samara Joy canta Djavan e encanta
De um palco minimalista a outro, a produção do C6 Fest montou o cenário de um espetáculo impecável. Não era preciso muito: um baixo acústico, uma bateria e um piano de cauda – além de um microfone para a grande atração que é a voz de Samara Joy.
A nova-iorquina de 23 anos surpreende porque, embora ofereça o que aparentemente será uma interpretação clássica do gênero, subverte as expectativas ao transformar o show em uma noite de contação de histórias. Samara se veste para o papel: salto agulha, vestido longo. Porém, na primeira oportunidade, vibra com os solos de seus músicos, se apoia ao piano para observá-los, conversa com o público. A sisudez que acompanha os espaços onde o jazz prospera – as casas de concerto, os teatros – se desfaz diante do sorriso de uma cantora que conhece seu potencial vocal, mas também a força que a música tem para contar histórias.
“Guess Who I Saw Today” é um dos pontos altos, em que cada frase do diálogo de uma esposa com o marido que chega em casa do trabalho ganha a entonação necessária para tornar aquela conversa irresistível. O blues “If You Don’t Like My Peaches (Then Don’t Shake My Tree)”, “Nostalgia (The Day I Knew)” e “Sweet Pumpkin” foram destaques, mas para o público brasileiro, o melhor ainda estava por vir.
Uma das primeiras canções da noite foi “Chega de Saudade”, em um aceno à bossa nova que tanto compartilha com o jazz. Lá pelo meio do repertório, “Flor de Lis” faz o público cantar alto o sucesso de Djavan – em entrevista ao TMDQA!, Samara revelou que já conhecia a sonoridade do cantor antes de viajar ao Brasil. Ela não só interpretou canções em Português cristalino, como apresentou toda a sua banda e disse amar o país, em frases cuidadosamente estudadas.
Ao sair do palco ovacionada, Samara Joy deixou o público clamando por um bis que não poderia vir. Afinal, o verdadeiro desafio na troca de palcos viria a seguir.
C6 Fest Rio: o show explosivo de Jon Batiste
Difícil saber a contagem exata de instrumentos ao redor de Jon Batiste. Mais de uma dezena de músicos vestidos de branco dividem espaço com muitos itens percussivos, guitarras, baixo acústico e elétrico, sopros, backing vocals e dançarinas, com o piano de cauda do grande mestre de cerimônias ao centro.
Quando sobe ao palco, Jon Batiste assume a postura de um condutor de uma big band e de um coral que inclui o público – que, a essa altura, incluía Samara Joy e toda a sua banda, sentados nas grades do pit e dividindo espaço com fotógrafos. Não tem medo de “gastar” suas canções mais populares bem no início, colocando a plateia para dançar com destaques de seu álbum ganhador do Grammy, “We Are”.
Após uma introdução apenas com a banda executando um samba digno de bateria na Sapucaí, “Tell The Truth” abriu a noite com energia nas alturas, seguida por inúmeras oportunidades para cantar e se mexer: “We Are” e “Freedom” dividiram espaço com as soturnas “Cry” e “St. James Infirmary Blues”, em momentos ao piano que relembram a longa trajetória de Batiste como jazzman construída muitos anos antes de ele expandir seus horizontes com o disco “Hollywood Africans” e o multipremiado “We Are”. No trabalho mais recente, ele se abre para explorar a excelência sonora afroamericana em toda a sua glória, celebrando os sons de sua New Orleans natal, num caldeirão de jazz, funk, soul, hip hop e rock.
No Rio, Jon fez uma second line típica da sua terra. E exortou o público, com provocações bem humoradas: “de onde eu venho, ninguém ouve uma música assim e fica parado como vocês. Eu preciso ver isso aqui”, dizia, mexendo o quadril. A banda que o acompanha no palco é um prazer à parte, completo com a presença de bailarinas igualmente carismáticas. Elas não só dançam com muita habilidade, como interpretam as emoções de cada canção, dando um tom ora dramático, ora cômico à coisa toda.
Mas as emoções estariam à flor da pele mesmo quando o palco receberia a realeza: Lia de Itamaracá, rainha da ciranda. O encontro, que havia sido sinalizado por Jon em seus stories naquele mesmo dia, se concretizou numa grande celebração das pontes sonoras entre a musicalidade de New Orleans e a brasileira.
Em meio a brass band e second line, escola de samba e pontos de umbanda, Lia e Jon compartilharam uma sintonia que não exigia domínio de Português. Batiste acompanhava cantando “Iemanjá”, mas participava com sua escaleta com reverência enquanto a bateria de Itamaracá somava ao palco festivo, agora com dezenas de músicos e cantores para executar cantos folclóricos, como “Eu Fui Na Beira da Praia” e “Meu Seu Jorge” – esta última, destaque do mais recente álbum de Lia, “Ciranda Sem Fim”.
Tamborins e trompetes se misturavam às dançarinas, que ajudaram a conduzir uma “second line carioca”. Em New Orleans, essa tradição consiste em populares que seguem a “first line” – as brass bands, grupos com muitos metais e percussão -, em festas de comunidades, casamentos e funerais. No Rio de Janeiro, o tom foi de celebração pelas veias compartilhadas por essas duas cidades tão distantes, mas ao mesmo tempo tão próximas.
A comemoração se tornou apoteótica, descendo no meio do público para se despedir com energia no alto – infelizmente, sem convidar o restante da plateia para seguir o cortejo até o backstage. Afinal, como já dizia o poeta, “todo carnaval tem seu fim”.
O C6 Fest, por outro lado, continua. No terceiro e último dia no Rio de Janeiro, o festival receberá shows de Terno Rei, Black Country, New Road e The War on Drugs.